30 outubro 2012

DO CAFÉ E OUTROS ALUCINÓGENOS

- Açúcar ou adoçante?
- Duas colheres de açúcar, please!

Mexeu o café e me alcançou como se me conhecesse de outras ressacas. Seus olhos, negros como a bebida, mantinham presa minha atenção.

- Experimenta aí pra ver se tá bom assim.
- Bah, tá ótimo, honey. Fico até sem jeito.
- Sem jeito ficaria eu se tu não aceitasse o café, né?!

Ela sorriu. Eu fiquei mesmo desajeitado, fora de eixo, mas fingi firmeza. Era bom nisso. Tomamos o café na tentativa de rebater o gosto do álcool que deixou nossos corpos cansados. Riamos até do avançado das horas, da fuga precipitada do sono enquanto os Stones cantavam baixinho ao fundo.

'she's like a rainbow coming
colors in the air
oh, everywhere
she comes in colors'

Falávamos de generalidades como antigos conhecidos, companheiros envelhecidos como vinho, duas pessoas que se reencontram ao passar de certo tempo para colocar a vida em dia. E, de certo modo, colocávamos. Nos servíamos de diálogos que embriagavam, de risos que despertavam a curiosidade em doses homeopáticas. Ambos livres de prisões sentimentais, de frustrações contemporâneas ou receio do novo que vinha junto com o nascer do dia.

- Bem, acho que nessa hora já tem ônibus.
- Pra quê?
- Acabou o café, o cd chegou ao fim e o reflexo do sol já bate no relógio. A noite cansou e virou dia, não percebeu, honey? Preciso ir nessa.
- Justamente, pra mim ainda é cedo. O domingo tá só espreguiçando os braços, guri. Fica aí e toma outro café, oras! Agora até te ofereço algo pra comer se tu topar.

Deixei escapar um sorriso desconcertado. Ela comemorou a vitória de maneira contida. E ficamos, os dois, a usar o café como desculpa para esticar ao máximo a duração do tempo.

15 outubro 2012

DO LARANJA E OUTROS ALUCINÓGENOS

Quando abriu a janela o dia despertava preguiçoso, como se cansado após uma noite abarrotada de momentos sublimes. O sol abria os braços devagar e banhava sua pele clara em tons laranja, enquanto Harrison murmurava em seu ouvido: “here comes de sun, little darling, here comes the sun…”. No canto do quarto eu permanecia em silêncio, como que anestesiado ao ver o romance entre ela e o sol. Meus olhos registravam cada cena como fotos que não são apagadas com o amarelo do tempo.

04 outubro 2012

BILHETE DE SUPERMERCADO

Ainda guardo comigo aquele último bilhete de supermercado no qual você desenhou um coraçãozinho no verso com as palavras 'tum-tum'. Na época perguntei o motivo e você disse que era o teu e que batia por mim. Falei que não precisava anotar nada, pois me lembraria de todos os itens. No entanto, mesmo assim você me deu aquele pedaço de papel e pediu cebola, bife, arroz, feijão preto, chocolate, e brócolis. Brinquei que o chocolate deveria ser escrito por último na ordem da lista, já que comeríamos depois. Então, ironicamente, ao voltar eu trouxe o chocolate e acabamos o comendo antes de prepararmos a janta. E foi nossa última refeição juntos. E foi doce.